Nietzsche em Cosmópolis
Mazzino Montinari
1.
“Ô peuple des meilleurs Tartuffes,
permaneço, com certeza, fiel a ti!”
— Ele disse isso e no navio mais rápido,
viajou para Cosmópolis. (eKGWB/NF-1884,28[52])
2. I. Assim escreveu Nietzsche no outono de 1884. O povo dos “Tartufos”, da “tartuferia moral” era – como se sabe – a Alemanha. Mas, onde ficava Cosmópolis, a cidade ideal do imoralista e espírito livre, do “bom europeu”? Ela ficava na França, “a sede da mais espiritual e mais refinada cultura da Europa”, a “elevada escola do gosto” (eKGWB/JGB-254 [1]). Nietzsche queria encontrar esta oculta “França do gosto” por trás do primeiro plano de uma “França imbecilizada e grosseira”, tal como em 1885, onde uma verdadeira “orgia de mau gosto e admiração por si” festejou Victor Hugo durante os seus funerais. A esta França do espírito pertencem – segundo Nietzsche – um pequeno número de pessoas, cujas pernas não são as mais fortes: fatalistas, sombrios, doentes, amolecidos e afetados, como Baudelaire, de quem provém a definição de Hugo como um “asno de gênio” (eKGWB/NF-1885,34[45] e 38[6]<eKGWB/NF-1885,38[6]>), que Nietzsche anotou, com prazer, em seu caderno. Nesta França do espírito, que também era uma França do pessimismo, num processo de indesejada germanização espiritual, Schopenhauer se tornara bem mais íntimo ainda do que na Alemanha.
3. Na medida em que Nietzsche, no mencionado aforismo 254 de Além do Bem e do Mal (eKGWB/JGB-254 [2]) não cita nenhum exemplo, então remeto ao romance A rebours, de Joris-Karl Huysmans, que tinha sido publicado em 1884. Este manifesto da décadence [3], que surge contra o naturalismo da escola de Zola e contra si mesmo, escolhera Schopenhauer como filósofo. Nietzsche conhecia, indiretamente, este romance sádico. Os mais finos e exigentes poetas de Paris, continua Nietzsche na sua descrição da “germanização” da França, tinham Heinrich Heine em sua carne e seu sangue, Hegel exercia na figura de Taine, uma influência quase tirânica; enfim, no que diz respeito a Richard Wagner: “quanto mais a música francesa aprenda a se configurar segundo as reais necessidades da âme moderne, tanto mais ela se vulgarizará... ela já o faz suficientemente agora!” (eKGWB/NW-Wohin). Sobre isso, dever-se-ia talvez citar os fragmentos póstumos, nos quais Nietzsche mais uma vez apresenta, numa confrontação crítica, seus interlocutores franceses: Stendhal, Mérimée, Taine, Renan, Sainte-Beuve, Flaubert, Baudelaire, Goncourt, Hugo, Michelet, George Sand. Que Delacroix como pintor, Flaubert como escritor e Heine e Baudelaire como poetas eram os grandes precursores da décadence parisiense, Nietzsche já o sabia:
4. O que floresce como poeta na França, está influenciado por Heinrich Heine e Baudelaire [...] pois, da mesma maneira que agora Schopenhauer é já mais querido e lido na França do que na Alemanha, também o culto a Heinrich Heine mudou-se para Paris. No tocante ao pessimista Baudelaire, ele pertence a estes incríveis anfíbios, que são tanto parisienses como alemães; sua poesia tem algo que se chama na Alemanha ânimo ou ‘melodia infinita’ e, por vezes, ‘lamento de gatos’. Mais do que o necessário, Baudelaire tinha um gosto talvez moribundo, mas bastante determinado e forte, consciente de si mesmo com isso, ele tiranizou os inseguros de hoje. Se ele foi o primeiro profeta do seu tempo e porta-voz de Delacroix, talvez tenha sido hoje o primeiro ‘wagneriano’ de Paris. Há muito de Wagner em Baudelaire. (eKGWB/NF-1885,38[5])
5. Isto foi escrito no verão de 1885, numa época em que as Oeuvres posthumes do poeta francês ainda não tinham sido publicadas. Quando o foram, em 1887 e Nietzsche as leu e fez anotações, encontrou nelas a confirmação de sua perspectiva crítica: Baudelaire tornara-se, de fato, wagneriano. A partir de 1884, Wagner chegava a Nietzsche não apenas em sociedade com Baudelaire, mas também com os irmãos Goncourt e Gustav Flaubert: “A pintura em lugar da lógica [...] A predominância do proscênio, as mil minúcias: tudo tem o gosto das necessidades dos homens nervosos, em Richard Wagner como nos Goncourts” (eKGWB/NF-1884,25[184]). Estes Goncourt, como Wagner, devem ser diferenciados com má-consciência dos décadents, pensa Nietzsche em um fragmento póstumo dos inícios de 1888 e nos textos preparatórios ao Caso Wagner da mesma época”:
6. Perguntei-me, se já houve, de algum modo, alguém moderno, mórbido, múltiplo, torturado o suficiente, para valer como preparatório ao problema Wagner? Os maiores, na França: Ch. Baudelaire, por exemplo. Talvez também os irmãos Goncourt. Os autores de ‘Faustine’ [o correto é ‘la Faustin’, M.M] acertariam, certamente, algo em Wagner [...] mas lhes falta música no corpo. (eKGWB/NF-1888,15[6])
7. O mesmo é válido, como já foi dito, para Flaubert. No verão de 1887, quando Nietzsche fala de uma transformação típica, dá G. Flaubert como o mais claro exemplo, entre os franceses e entre os alemães, R. Wagner: entre 1830 e 1850 a crença romana no amor e no futuro se transforma em anseio pelo nada. No Caso Wagner, Emma Bovary se torna o protótipo perfeito das heroínas wagnerianas:
8. Acreditam vocês que as heroínas wagnerianas, todas e cada uma delas, chegam a se confundir com madame Bovary, tão logo lhes retiramos a casca heróica? – E inversamente se compreende que Flaubert poderia ter traduzido sua heroína em escandinavo ou cartaginês e a oferecido então a Wagner, mitologizada, como libreto[4]. (eKGWB/NF-1888,15[6])
9. Nietzsche falou, muitas vezes, na Cosmópolis da décadence, a última ainda e em uma passagem decisiva de seu escrito anti-wagneriano, Nietzsche contra Wagner, assim como no Ecce homo, ou seja, no outono tardio de 1888. O pequeno escrito Nietzsche contra Wagner é, como sabemos, uma seleção de passagens sobre Wagner dos escritos anteriores de Nietzsche. Também o aforismo 254 de Além do Bem e do Mal (eKGWB/JGB-254) foi incorporado, de todo modo com alguns esclarecimentos decisivos, que nos fazem entender melhor a proximidade de Nietzsche com a décadence parisiense e mesmo sua polêmica contra Wagner não apenas como características antípodas mas, muito mais, como uma confissão de sua própria afinidade com Wagner. A segunda parte do aforismo experimentou profundas mudanças; agora lemos:
10. Nesta França do espírito, que é também a França do pessimismo, Schopenhauer se encontra mais em casa do que jamais esteve na Alemanha; sua obra principal já traduzida duas vezes, a segunda excepcionalmente, de modo que eu hoje prefiro ler Schopenhauer em francês (ele foi um acaso entre os alemães, como eu sou um tal acaso – os alemães não têm dedos para nós, eles não têm dedos em absoluto, somente patas). Sem falar de Heinrich Heine – l’adorable Heine, dizem em Paris -, que há muito penetrou a carne o sangue dos poetas franceses mais profundos e mais ricos de alma. Que pode o gado alemão fazer com as délicatesses de uma tal natureza? – Quanto a Richard Wagner, por fim: é palpável (com as mãos, não com os punhos) que Paris é o verdadeiro solo para Wagner [...] na Alemanha Wagner é tão só um mal entendido [...] Permanece um fato seguro, para todo conhecedor do movimento cultural europeu, que o romantismo francês e Richard Wagner estão ligados da maneira mais íntima. (eKGWB/NW-Wohin)
11. Na medida em que em Além do Bem e do Mal Nietzsche falava de uma germanização da França, ele conclui então, que os alemães – Schopenhauer, Heine, Wagner – foram incorporados apenas porque eles todos – exatamente como o próprio Nietzsche – eram um acaso em sua pátria. Sua pátria era – Cosmópolis. Desse modo, a descrição do romantismo francês, tal como Nietzsche o conheceu, faz sua última aparição em Nietzsche contra Wagner – suficientemente fundamentada, como veremos:
12. Todos tomados pela literatura até nos olhos e ouvidos – os primeiros artistas europeus de formação universal -, na maioria também escritores e poetas eles próprios, mediadores e misturadores dos sentidos e das artes, todos fanáticos da expressão, grandes descobridores no reino do sublime, também do feio e do horrível, descobridores ainda maiores no âmbito do efeito, na exposição, na arte da vitrine, todos talentos muito além do seu gênio – virtuoses de cima a baixo, com misteriosos acessos a tudo o que seduz, atrai, compele, transtorna, inimigos natos da lógica e da linha reta, cobiçosos do que seja estranho, exótico, enorme, de todos os opiacéos dos sentidos e do intelecto. No todo, uma espécie ousada-temerária, esplêndida-violenta, altaneira e arrebatadora de artistas, que principalmente teve de ensinar ao seu século – o século da massa – a noção de ‘artista’. Mas doente... (eKGWB/NW-Wohin)
13. Esta empática caracterização do artista-décadence, deve ser ouvida. De qualquer maneira, [deve-se ouvir] a palavra “doente” ao final . Mas, se alguém quiser lê-la retirando esta empatia, então este alguém, mas sobretudo nós, deveríamos lembrar o que Nietzsche entende, nesta conexão, como doença e décadence:
14. 1. Uma caracterização geral, para a qual já chamei a atenção em outras oportunidades. Se Nietzsche fala da vida em sua totalidade, ou seja, a partir do ponto de vista superior de suas considerações filosóficas, de afirmação da vida como o anel do eterno retorno do mesmo, então ele não quer excluir dela nenhum aspecto e nenhum momento em particular. Para dar um exemplo famoso: o último homem é uma completa objeção contra o pensamento do eterno retorno do mesmo, mas ele deve – também ele, o último homem – tornar-se afirmativo. Aqui reside um paradoxo, que reinsere a doutrina do retorno, ao mesmo tempo, em uma esfera transcendental (não transcendente). A visada nesta esfera relativiza, imediatamente, qualquer produção no âmbito do nosso pensar e da nossa vida; em um certo sentido a doutrina torna-se, com isso, um motor para uma ininterrupta colocação e superação de posições e negações: uma tranqüilidade em qualquer consideração sobre o mundo torna-se impossível e o próprio Nietzsche queria, de algum modo, tê-la. Isso seria mantido como um pressuposto mais especulativo.
15. 2. Este movimento de posição e negação é, de fato, dado pela totalidade do pensamento de Nietzsche, sem o que não se precisaria remetê-lo, a todo momento, ao seu pressuposto transcendental. Assim na questão da décadence, mesmo aí ainda, onde esta palavra significa ‘progresso moderno’:
16. [...] há também hoje, partidos que ainda sonham como a meta de todas as coisas, o andar de caranguejo (Krebsgang). Mas ninguém está livre de ser um caranguejo. Nada ajuda: deve-se ir adiante, quer dizer, passo-a-passo em direção à decadência (eis minha definição do ‘progresso moderno’....). Pode-se inibir este desenvolvimento, através da inibição estancar , coletar, veemente e subitamente a própria degeneração: mais não se pode. (eKGWB/GD-Streifzüge-43)
17. Ou, ainda mais claramente, em um fragmento sobre a dominação dos instintos de declínio no mundo moderno:
18. [...] a espécie não é talvez, uma grande garantia da vida, nesta vitória dos fracos e medíocres? Não se trata talvez apenas de um meio no movimento total da vida, um retardo da velocidade? Uma legítima defesa contra algo ruim? Os fortes tornar-se-iam senhores, em tudo e também nas valorações do mundo? Vejamos as conseqüências, como eles poderiam pensar a doença, o sofrimento, o sacrifício? Um auto-desprezo dos fracos seria a conseqüência; eles tentariam desaparecer e se extinguir... E isso seria, talvez, desejável?... Gostaríamos, de verdade, de um mundo onde faltasse os efeitos dos fracos, sua sutileza, seu respeito, sua espiritualidade, sua flexibilidade?... (eKGWB/NF-1888,14[140])
19. Nenhum dogmático da afirmação da vida se pergunta isso, nenhum nietzscheano também, Nietzsche, em todo caso sim e eu não tenho nenhuma dúvida sobre o seu NÃO como resposta.
20. 3. Acerca da doença e da décadence, Nietzsche se manifestou com toda clareza desejável em sua autobiografia, no Ecce homo. Todos conhecem a frase de Nietzsche: “Sem contar que sou um décadent, sou também o seu contrário” (eKGWB/NF-1888,24[1] [5]). A doença vale para ele como fonte de conhecimento:
21. Da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence – este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira esperiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. (eKGWB/EH-Weise-1)
22. É exatamente esta competência, que capacita Nietzsche para compreender a cultura francesa moderna como um todo, o que ela era, o que significava. Em um capítulo do Ecce homo, ele diz: “creio apenas na cultura francesa e vejo como um mal-entendido tudo o mais que se denomina ‘cultura’ na Europa” e, logo após ter pensado nos seus velhos e grandes autores franceses (Montaigne e Pascal acima de tudo), continua:
23. [...] nada disso impede afinal que também os franceses mais recentes sejam para mim companhia encantadora. Não vejo absolutamente em que século da história se poderia por lado a lado psicólogos tão inquiridores e ao mesmo tempo tão delicados, como na Paris de hoje: menciono como amostra – pois o seu número não é pequeno – os senhores Paul Bourget, Pierre Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaître, ou para destacar um de raça forte, um autêntico latino ao qual sou especialmente afeiçoado: Guy de Maupassant. (eKGWB/EH-Klug-3)
24. Mas é novamente Wagner que, no Ecce homo, oferece a Nietzsche a possibilidade de se expressar de um modo indubitável sobre a doença e sobre a decadência francesa, ou seja, sobre a decadência européia. Parece-me, que Nietzsche nas partes 5 e 6 do capítulo “Por que sou tão inteligente” diz sobre Wagner sua última e mais profunda verdade:
25. Como artista não se tem outra pátria na Europa além de Paris: a délicatesse nos cinco sentidos artísticos que a arte de Wagner pressupõe, os dedos para nuances, a morbidez psicológica encontram-se somente em Paris. Em nenhum outro lugar se tem a paixão em questões de forma, essa seriedade na mise en scène – é a seriedade parisiense par excellence. [...] Mas, já falei o suficiente [...] sobre qual o lugar de Wagner, onde estão seus parentes mais próximos: é o romantismo francês da última fase, aquela espécie altaneira mas arrebatadora de artistas como Delacroix, como Berlioz, com um fond de enfermidade, de incurabilidade no ser, puros fanáticos da expressão, virtuoses de cima a baixo... Quem foi o adepto mais inteligente de Wagner? Charles Baudelaire, o mesmo que primeiro compreendeu Delacroix, aquele típico décadent, no qual uma inteira geração de artistas se reconheceu – também o último talvez... (eKGWB/EH-Klug-5)
26. E da parte 6, sobre o Tristão, apenas estas palavras:
27. Tomo como uma felicidade de primeira ordem ter vivido no tempo certo e justamente entre alemães, para estar maduro para esta obra: tão longe vai em mim a curiosidade do psicólogo. O mundo é pobre para quem nunca foi enfermo o bastante para esta ‘volúpia do inferno’: é lícito, é quase imperativo empregar aqui uma fórmula de místicos... (eKGWB/EH-Klug-6)
28. “O mundo é pobre para quem nunca foi enfermo o bastante para esta ‘volúpia do inferno’”. Esta não é apenas uma fórmula mística, ou, melhor ainda: esta fórmula mística é pura e simplesmente a fórmula par excellence, que resume em si este mundo fascinante, sombrio e repulsivo do romantismo decadente, tal como o conhecemos sob a intrépida direção de Mario Praz em La carne, la morte e il diavolo.
29. II. Em duas cartas melancólicas a Franz Overbeck, escritas no outono de 1883 (em 27 de outubro e 9 de novembro), Nietzsche se manifesta acerca do problema de encontrar, para seu estado de saúde, um lugar suportável, no qual ele possa viver os outonos e invernos:
30. Viver não na Alemanha e nem com meus parentes, me é todavia tão importante quanto a tortura do comer pouco [...]. (eKGWB/BVN-1883,470)
31. Estou, como devo infelizmente informar, triste o bastante. Crise após crise, todo dia uma história de doença e muitas horas onde digo para mim: ‘não sei mais ajudar a mim mesmo’. Agora, percebo claramente o quanto a minha vida rolou um grande número de anos, tão pobre e amputada de satisfações externas – e agora, onde a silenciosa esperança me abandonou, estes alívios e satisfações devem alcançar-me. Constantemente, fico ainda enfurecido com o fato de que, tanto quanto me lembre, falta-me alguém com quem eu possa refletir sobre o futuro do homem. Nada me ajuda, ninguém imagina nada que possa me divertir e elevar, não se quer apresentar nada neste meio tempo e me redimir de todas as impressões ofensivas, com as quais me cobriram os últimos anos. Meus olhos estão muito mais incapacitados do que antes, faz muito tempo que a solidão tornou-se para mim um fardo. Por isso, não quero mais, de modo nenhum, ir para Gênova, é muito barulhenta e seus locais de passeio são bastante distantes. Percebo que não se pode fazer nada pela segunda vez. Para convalescer, preciso de novas inauditas impressões. (eKGWB/BVN-1883,473)
32. Em meados de novembro de 1883, Nietzsche passa uma temporada em Nice pela primeira vez, ou seja, na França. Em si, a internacional cidade-doente, pareceu-lhe horrível, mas era o “local de ar mais seco da Riviera” e apresentara um grande número de dias claros e puros, de tal modo que, contra as impressões desagradáveis, Nietzsche se mostrou – tal como escreveu – “defensivo” (eKGWB/BVN-1884,566): agradou-lhe sim, o ar e o céu de Nice... A partir de então, ele passou os meses do fim do outono ao inverno, em Nice: no total, cinco vezes até o início de 1888, quando descobriu Turim. Esta necessária mudança climática trouxe consigo outras conseqüências. Nesta Cosmópolis certamente não-ideal, Nietzsche entrou em contato ainda mais próximo com a literatura e a imprensa francesas. Após a publicação da terceira parte do Zaratustra (que Nietzsche considerava, até então, o fechamento da obra), passou-se um ano inteiro sem previsão de publicações e por isso, ele leu bastante e quase exclusivamente livros franceses. A extensão destas leituras pode ser reconstruída com a ajuda de sua biblioteca privada e dos excertos nos seus cadernos de notas. Não eram mais ou apenas os antigos autores franceses como Montaigne e Pascal ou os modernos de quem gostava, como Stendhal, mas Nietzsche incluiu novos autores, que tornaram-lhe íntimo da cultura da restauração e do romantismo francês (Custine, Doudan, Balzac); mas, sobretudo, ele se põe ao corrente das novidades de Paris. Isso aconteceu através das obras dos críticos expressivos da época: Jules Lemaitre, Ferdinand Brunetière, Paul Bourget e dos antigos: Edmond Scherer, Paul Alberty. Estes são apenas alguns dos críticos lidos por Nietzsche, outros estão esquecidos hoje. Um livro de Louis Desprez, por exemplo, L’évolution naturaliste, foi uma espécie de balanço do movimento naturalista. Este livro foi publicado em 1884, em um ano que ainda hoje é considerado pelos críticos de literatura francesa, como um ano de mudança. Dois anos depois, através de um artigo de Jules Lemaitre, Nietzsche, provavelmente, tomou conhecimento deste livro, no qual se completa a passagem do naturalismo à décadence. A décadence, aquilo que o jovem Paul Bourget, na revista La vie littéraire, no ano de 1876 e depois, em seu livro Essais de psychologie contemporaine, que se tornou rapidamente famoso, caracterizara como a sensibilidade da sociedade européia, foi apontada, em 1884, como um programa de vida, como posição literária em A rebours, de Joris-Karl Huysmans, um romance que fez época.
33. Este romance contém todos os temas da décadence, ele é a sua suma, o seu manifesto. Nele, se faz tábula rasa de toda ilusão otimista. O protagonista, Monsieur des Esseintes vive a contra pêlo, contra a natureza. Após uma vida de excessos morais e físicos, ele se constrói um mundo de artificialidade: ele ama as orquídeas, porque elas são as flores que mais se aparentam a flores artificiais, porque nelas a natureza imitou melhor as feridas da sífilis. Seus escritores são os latinos da decadência: os clássicos, como Vergílio e Horácio, ele os acha insípidos. Seus ídolos entre os modernos são Baudelaire, os Goncourts (sobretudo o romance La Faustin), Flaubert (em especial As tentações de Santo Antônio), assim como Barbey d’Aurevilly e outros autores católicos. Os grandes são os que ainda não eram conhecidos na época, como Paul Verlaine e Stéphane Mallarmé. Huysmans pertencera à escola de Zola, participara do movimento naturalista. Se nele, o pessimismo, o realismo intrépido, a preparação para o aspecto tenebroso, horrível, nauseante da vida se condensou em uma misantropia, que considerava tudo superficial, idiota e risível, Huysmann tinha, entretanto, um comportamento ad absurdum e com isso, era uma conseqüência do naturalismo. Aliás, o próprio Zola observou certa vez: “eu gosto dos excitantes literários fortemente condimentados, as obras da décadence, nas quais uma espécie de sensibilidade doente aparece no lugar da exuberante sensibilidade da época clássica”. Nesta direção, caminharam também os Goncourts, cujos romances, sobretudo a partir de 1876, foram lidos com paixão e prepararam esta “sensibilité moderne”, tal como, por exemplo, no Charles Demailly, seu mais importante romance. Não é certo, se Nietzsche leu Huysmans, pois ele conhecia os Goncourts, Barbey d’Aurevilly, Baudelaire e outros mais, ele vivia nesta atmosfera, era íntimo da discussão literária, tinha em si mesmo – e este é o ponto principal – os pressupostos da décadence. Nietzsche era um filho do seu tempo, como ele apontou no Caso Wagner e, por isso, décadent.
34. Em todo caso, Nietzsche se volta contra a décadence, ele se confronta com ela, e isso só poderia acontecer na Cosmópolis: de novembro de 1884 até o início de 1888, ou seja, até que o problema da décadence também impregne a totalidade de suas reflexões filosóficas, como se pode extrair de seus planos da Vontade de Poder. No início desta peripatetia, está uma observação sobre Wagner, do inverno de 1883/84, a conclusão, a fisiologização do problema; de um lado – como veremos a seguir – o livro de Paul Bourget Essais de psychologie contemporaine, de outro lado, um outro livro francês, oDégénérescence et criminalité, de Charles Féré. Não é minha intenção dizer algo a respeito da fisiologização, sinalizada pelo livro de Féré. Gostaria, muito mais, de sublinhar a nova sensibilidade, com a qual Nietzsche se via confrontado na França. A observação sobre Wagner, do inverno de 1883/4, diz:
35. Estilo da decadência em Wagner: a locução individual torna-se soberana, a hierarquia e a organização torna-se ocasional. Bourget, p. 25 (eKGWB/NF-1883,24[6])
36. Nietzsche pensa na página 25 dos Essais, de Bourget e lá, lemos no capítulo sobre Baudelaire e sob o título de ‘Théorie de la décadence’:
37. Um estilo da decadência é um estilo, no qual a unidade do livro se desfaz, para dar lugar à autonomia da página, a página se desfaz, para dar lugar à autonomia da sentença e a sentença, para dar lugar à autonomia da palavra.
38. Não devemos, de fato, esquecer, que a fisiologização já estava posta na descrição da décadence, feita por Bourget. Um pouco antes, ele escrevia (p. 24):
39. Uma sociedade é igual a um organismo. Como organismo, ela se divide em uma associação de organismos menores; estes, por sua vez, são associações de células. O indivíduo é a célula da sociedade. Com isso, para que o organismo exista fortalecido em sua totalidade, é necessário que os organismos, formadores da totalidade, funcionem fortalecidos, porém subordinados.
40. Uns dois anos depois (meados de abril de 1886), Nietzsche escreve em uma carta a Carl Fuchs:
41. A palavra wagneriana ‘melodia infinita’ expressa, primorosamente, a ruína do instinto e da boa crença, da boa consciência. A ambigüidade rítmica, de tal modo que não se sabe mais e não se deve saber, se algo é rabo ou cabeça é, sem nenhuma dúvida, um recurso artístico com o qual se pode alcançar um efeito maravilhoso: oTristão é rico nisso – como sintoma de toda uma arte é, e permanece, apesar disso, o signo da dissolução. A parte torna-se senhor sobre o todo, a frase sobre a melodia, o instante sobre o tempo (Zeit) (também sobre a rapidez (Tempo)), o pathos sobre o ethos (Caráter, estilo ou como se deva chamar isso), finalmente também o espírito sobre o ‘sentido’. Perdão! O que eu creio perceber é uma mudança de perspectiva: vê-se o particular demasiadamente apurado, vê-se a totalidade demasiadamente embotada, - e tem-se a vontade desta ótica, na música, tem-se sobretudo, talento para isso! Mas, isto é décadence, uma palavra, que não deve ser rejeitada, tal como se entende automaticamente entre nós, mas deve apenas uma caracterização. (eKGWB/BVN-1886,688)
42. Vemos aqui, como Nietzsche maneja com autonomia a teoria da décadence, como ele desenvolve algo, para entrever o que, na época, ninguém era capaz. Seu postulado de um grande estilo em oposição ao estilo da décadence permanece emperrado, de todo modo, em generalidades e sugestões, apesar de suas tentativas posteriores no Crepúsculo dos Ídolos que, por sua vez, retomam impressões de leituras parciais das obras de Burckhardt, como por exemplo, o Cicerone, assim como quando ele jogo o Palácio Pitti (na citada carta a Fuchs e também em fragmentos póstumos) contra a 9ª Sinfonia[6]. Alguns anos após a carta a Fuchs, Nietzsche escreveu no Caso Wagner:
43. Como se caracteriza toda décadence literária? Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. A palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo – o todo já não é um todo. (eKGWB/WA-Brief-7)
44. Também aqui, deve-se destacar a assimilação da teoria da décadence por Nietzsche. De fato, ele introduziu uma variante: o movimento, no Caso Wagner, vai do particular ao geral, da palavra à totalidade, enquanto nos Essais, de Bourget, da totalidade e do geral – do livro – ao particular – à palavra. Dever-se-ia falar, como era costume no final do século (mas ainda também hoje entre os wagnerianos não inteligentes), de plágio? Ou do direito do gênio à pilhagem, com a obrigatória referência a Goethe, que também etc., etc.? Não. Precisamos muito mais aprender a pensar historicamente. Nietzsche, Bourget e outros críticos populares da época, mas também inteligentes, têm um direito comum a questões comuns. Eles vivenciaram, conjuntamente, este fenômeno da décadence, eles o analisaram conjuntamente, porque todos eram filhos do mesmo tempo. A assimilação (sem nenhuma nota de pé de página de Nietzsche sobre sua proveniência) é, para mim, um motivo de prazer histórico, que também os micrólogos e outros pedantes gostariam de oferecer, com suas estéreis e azedas colocações corretas. Ou seria espantoso que Nietzsche tivesse se interessado tão fortemente por Bourget? Leia-se, novamente, a seguinte passagem no capítulo sobre Baudelaire [do livro de Bourget – EC]:
45. Uma náusea generalizada contra as falhas deste mundo preenche o coração dos escravos, teutões e romanos e parece, nos primeiros, niilismo, no segundo, pessimismo, entre nós como neurose solitária e estranha. A fúria assassina em São Petersburg, os livros de Schopenhauer, o incêndio da Comuna e a misantropia dos romancistas naturalistas mostram o mesmo espírito de negação da vida que, diariamente, desertifica cada vez mais a civilização ocidental.
46. Nietzsche se deixa instruir com prazer: por Bourget, por Lemaitre, Taine, pelos Goncourts, até mesmo por Barbey d’Aurevilly. Este último, um escritor católico da velha geração, que permaneceu sob a influência de Chateaubriand e Byron, vale como caso exemplar desta literatura mórbida, sádica, conhecida por nós através do livro de Mario Praz: na coletânea Les Diaboliques acontecem todas as monstruosidades possíveis, que apenas por isso têm efeito interessante e picante, porque foram inventadas por um católico, que tem um gosto especial na profanação, no delito, no sacrilégio, em toda espécie de Sabá e missa negra, no incesto e nas perversões sexuais, exatamente como um outro católico (em todo caso posterior) Huysmans, cujo romance A rebours, Barbey d’Aurevilly saudou como uma grande realização literária. A Overbeck, Nietzsche escreveu a 4 de maio de 1887, a respeito de uma coletânea de ensaios deste autor: “No mesmo dia, li Oeuvres et hommes, de Barbey d’Aurevilly, um francês insatisfeito, um independente (pois sua independência diz, agora, muito mais respeito ao seu catolicismo do que ao seu livre-pensar). Leia-o, sob minha responsabilidade [...]”. Todavia, acrescentou: “Como romancista, ele me é insuportável”. (eKGWB/BVN-1887,483)
47. Como se pode entender isso, quando se pensa que Nietzsche deveria desviar-se do gosto propriamente católico no delito, no sacrílego, de acordo com sua origem fundamentalmente protestante? Importante no caso, é a afirmação de que Nietzsche deve ter lido sim os seus romances, e é nossa convicção que Nietzsche leu muito mais da literatura francesa como um todo, do que nós ainda podemos deduzir, apesar da biblioteca póstuma, dos fragmentos póstumos, das cartas. Mas, existem muitas leituras de Nietzsche que poderiam ser conhecidas e que até agora não receberam nenhuma atenção por parte dos pesquisadores. O capítulo Goncourt, por exemplo, deve ainda ser escrito. Nietzsche leu, certamente, La Faustin, Charles Demailly, Renée Mauperin,Manette Salomon, sem falar dos três volumes do Journal. E quem era este Catulle Mendes, a quem Nietzsche dedicou, por fim, seus Ditirambos a Dioniso? Certamente um conhecido do círculo de Wagner; Mendes circulou em Tribschen (com seu amigo Villiers d’Isle-Adamy) e Bayreuth; sua primeira mulher, Judith Gautier (a filha de Theophile Gautier, um dos pais da décadence francesa, ela mesma escritora), esteve implicada, dito de passagem, em uma história de amor com o envelhecido Wagner... Sim, quem era este “grande e primeiro sátiro, que vive hoje e não apenas hoje” (eKGWB/BVN-1889,1235), como Nietzsche o apostrofou na dedicatória? Ele era um dos mais considerados escritores da décadence, como Barbey d’Aurevilly sem, entretanto, o catolicismo deste. Em um dos seus romances, Zoh’ar, de 1886, ele apresentou um dos temas mais caros da décadence, o do incesto: irmão e irmã são seduzidos pela música – numa apresentação de ballet. Dois anos antes – em 1884 – um outro romancista, Elémis Bourges – ligara o mesmo acontecimento sexual a uma apresentação das Valquírias...Todos vocês pensarão na novela Wälsungenblut, de Thomas Mann: ela foi escrita em 1905, ou seja, vinte e um anos após o romance Crépuscule des Dieux, de Elémir Bourges: evidentemente, críticos falaram de plágio. Leia-se a respeito, minha fonte: Dekadenter Wagnerismus, de Erwin Koppen, para que vos convençam o quão tais questões sobre plágio são vãs.
48. Nietzsche, por sua vez, anotou ao pé da letra, neste fragmento sobre Wagner do inverno de 1883/4, já mencionado: “Wagner — culto francês do horrível e da grande ópera. Paris e fuga para o estado primitivo (O casamento da irmã)” (eKGWB/NF-1883,24[6]). Alguns anos após o seu colapso psíquico Nietzsche tornou-se, na França, o mais discutido e conhecido pensador alemão. Seus escritos foram traduzidos, houve logo um nietzscheanismo francês e, com isso, um nietzscheanismo europeu, cosmopolita; uma antologia francesa de textos de Nietzsche, do ano de 1892, é responsável pelo nietzscheanismo de Gabriele d’Annunzio. Importantes escritores e pensadores franceses como André Gide, Romain Rolland, Paul Valéry, Albert Camus, André Malraux, George Bataille, Jean Wahl, Jean-Paul Sartre, são totalmente impensáveis sem Nietzsche e eu mencionei apenas alguns dos mais importantes. Foi publicada na França, no início dos anos 30, a mais abrangente e impressionante obra da pesquisa sobre Nietzsche: Nietzsche, sa vie et sa pensée, de Charles Andler, em seis grossos volumes. Tentou-se esclarecer a forte influência de Nietzsche sobre a cultura francesa, através de um nietzscheanismo pré-existente (Geneviève Bianquis). Sugiro inverter esta perspectiva: a literatura e a filosofia francesas foram preparadas para Nietzsche, mas o próprio Nietzsche se preparou, através de seu profundo conhecimento e assimilação da cultura francesa da décadence, para sua ressonância na França, ou seja, na Europa.